Um não católico pode salvar-se?
Quem é que pode chegar ao céu?

Introdução
O mundo Ocidental está cada vez mais secularizado. Ao olhar para a sociedade contemporânea percebemos rapidamente que muita gente não é católica, ou porque nunca foi, ou porque renunciou à fé. Parece haver um terceiro caso, aqueles que guardam a fé, mas renunciam à prática. Quantas vezes já ouvimos dizer: “Eu sou um católico não-praticante”? Este caso é apenas aparente porque um “católico não-praticante” é como um ciclista que não pedala, é uma contradição [1]. Ou se é católico (praticante), ou não se é católico de todo, não há uma terceira possibilidade. Deixar de praticar a fé de maneira habitual, é negar a fé. A verdade é que vivemos num clima de indiferença religiosa e numa cultura do relativismo [2].
Deus «quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade» (1 Tm 2, 4). A ausência e a perda da fé causam-nos um grande transtorno. Porque somos católicos a nossa salvação e a salvação do nosso próximo (e de todos os homens em geral) importam-nos. Por isso muitas vezes fazemos estas perguntas:
Um não-católico pode salvar-se?
Quem é que pode chegar ao Céu?
Actualmente, muita gente acha que estas perguntas nem fazem sentido, porque “não há Inferno” [3] e, por isso, “vai toda gente para o Céu”. É uma opinião generalizada, mas que não tem fundamento nenhum, nem na Sagrada Escritura nem no ensinamento constante da Igreja. Na verdade Jesus afirma de maneira bastante explícita que, infelizmente, há pessoas que não se salvam: «Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que seguem por ele» (Mt 7, 13) [4]. Não é um simples aviso! Jesus afirma a perdição real de muitos. O Concílio de Trento afirma claramente: «Ainda que ele [Cristo] “tenha morrido por todos” (2 Cor 5, 15), nem todos, no entanto, recebem os benefícios da sua morte, mas apenas aqueles a quem os méritos da sua Paixão são comunicados» [5]. É precisamente essa comunicação vital dos tesouros da Cruz que constituiu a Igreja. São membros da Igreja aqueles que recebem o dom da fé viva, mas, infelizmente, há muitos que recusam deliberadamente os dons de Deus.
“Fora da Igreja não há salvação!” Eis aqui um dogma [6] que mete medo! No entanto, isto é uma das proclamações mais solenes dos Padres da Igreja dos primeiros séculos e do Magistério da Igreja até aos dias de hoje [7]. Esta verdade é afirmada por Santo Atanásio no seu famoso “Quicumque”: «Quem se quiser salvar deve, antes de mais nada, possuir a fé católica. Quem não a guardar íntegra e inviolada perder-se-á sem dúvida por toda a eternidade».
Mas o que é que a Igreja quer dizer quando nos ensina que ninguém se pode salvar fora dela? Não será isto um absurdo demasiado exclusivista e restritivo, que fecha a porta às ovelhas desgarradas que não são membros da Igreja Católica? Não será isto contrário ao Evangelho? Será que isso implica que todos os não-cristãos e mesmo os não-católicos (os protestantes, por exemplo) vão parar ao Inferno? Atenção para não começar a tirar conclusões precipitadas!
Para percebermos melhor a doutrina da Igreja vamos analisar tranquilamente este assunto.
A compreensão dos dogmas na Igreja
A expressão “fora da Igreja não há salvação” é provavelmente uma das expressões mais mal compreendidas da história! [8] Ao ouvi-la, as pessoas quase que tapam os ouvidos e pensam que a Igreja ensina que: todas as pessoas que não são católicas baptizadas, quando morrem, vão todas necessariamente para o Inferno. Alguns modernistas até afirmam que a Igreja, depois do Concílio Vaticano II, já não ensina que “fora de Igreja não há salvação”. Isto é absolutamente falso, porque o Concílio reafirmou esta verdade de fé em Lumen Gentium 14 e o Catecismo da Igreja Católica também a voltou a mencionar [9]. Como compreender esta afirmação? É preciso compreendê-la como a Igreja a compreende.
Antes de mais, convém relembrarmos um princípio básico: a verdade, devido ao seu carácter imutável, não pode estar sujeita a mudanças. Se uma verdade de fé foi proclamada solenemente pela Igreja de Cristo e pelo seu magistério, isto significa que ela nunca poderá ser falsa no futuro. Que credibilidade teria a Igreja se a sua doutrina mudasse ao longo dos tempos? Nesse caso não poderíamos afirmar que essa fosse a verdadeira Igreja de Cristo, porque o ensinamento de Cristo não se pode contradizer. Portanto, a opção “não, a Igreja já não ensina esses velhos dogmas da Idade Média” não é aceitável do ponto de vista racional. A doutrina da Igreja é coerente e nunca é irracional.
É verdade que a doutrina da Igreja em termos de fé e moral não pode mudar, mas a compreensão de uma verdade pode ser aprofundada! Os dogmas são por natureza imutáveis, mas a sua compreensão pode afinar-se com o tempo[10]. Por exemplo, os dogmas cristológicos foram definidos muito cedo, desde os primeiros concílios, mas a sua compreensão foi melhorando ao longo dos séculos. São Tomás de Aquino tinha provavelmente uma melhor compreensão da união hipostática[11] do que o Apóstolo São Tiago.
A solução
Vamos à questão: O que é que a Igreja quer dizer quando afirma que não há salvação fora dela?
Temos de fazer uma distinção importante para perceber esta expressão. Quando falamos na necessidade de pertencer à Igreja Católica temos de distinguir entre aquilo que os teólogos chamam a pertença real (in re) visível e a pertença de desejo (in voto) invisível[12]. De facto, podemos pertencer à Igreja pelo desejo, através de uma vontade íntima e profunda, sem ser um membro visível propriamente dito (que tem a fé Católica e é baptizado sacramentalmente). Este desejo pode ser explícito (é o caso dos catecúmenos – daqueles que se prepararam para o baptismo e conhecem a doutrina católica), mas também pode ser implícito no caso dos homens de boa vontade que, sem culpa própria, ignoram a existência da verdadeira Igreja de Cristo. Todos esses homens de boa vontade pertencem à Igreja de maneira implícita e invisível pelo desejo sobrenatural de fazer a vontade de Deus.
Pertencer à Igreja e estar em estado de graça[13] - ou seja, unido a Deus pela caridade – é necessário para a salvação, mas há diferentes graus de pertença.
Aqueles a quem o Evangelho foi pregado e a Igreja Católica suficientemente apresentada como sendo a única e verdadeira Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, têm necessariamente de pertencer completamente à Igreja e, por isso, têm de ser baptizados (ou desejar sê-lo: é o caso dos catecúmenos que têm o baptismo de desejo) e perseverar em estado de graça[14]. Não se salvam todos aqueles que perseveram obstinadamente no erro voluntário e culpável, ou seja, todos aqueles que, sabendo que a Igreja Católica é a única e verdadeira Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, se recusam a entrar n’Ela[15] e não querem aceitar os deveres que a verdade impõe; e todos aqueles que ignoram o Evangelho de maneira deliberada[16], como um estudante de medicina que é negligente a estudar certas matérias, um dia, quando for médico, será incapaz de diagnosticar certas doenças, nesse caso a sua ignorância é culpável. É a estas pessoas que “pecam contra a luz” que se aplica a expressão “fora da Igreja não há salvação”.
Já antes do Concílio Vaticano II, o Papa Pio IX dizia: «Claro que aqueles que se encontram numa situação de ignorância invencível[17] (…) que levam uma vida recta e honesta, podem, com a ajuda da luz e da graça divinas, alcançar a vida eterna. Porque Deus (…), na sua bondade suprema e na sua clemência, não permite que soframos as penas eternas sem que sejamos culpados por cometer alguma falta voluntária». Além disto, o Papa Pio IX sempre afirmou: que ninguém pode ser salvo fora da Igreja Católica; que a salvação dos homens honestos em situação de ignorância invencível se realiza graças à mediação da Igreja; e que aqueles que se opõem, deliberadamente e com plena consciência, aos ensinamentos da Igreja não alcançam a salvação. O Concílio Vaticano II confirma esta doutrina: «Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna»[18].
Portanto, são precisas três condições para se ser salvo sem pertencer visivelmente à Igreja de Cristo:
Ignorar Cristo e a sua Igreja devido a razões sérias;
Procurar Deus com um coração sincero;
Seguir a voz da consciência numa busca autêntica da verdade.
O Catecismo da Igreja Católica diz claramente: «Todo o homem que, na ignorância do Evangelho de Cristo e da sua Igreja, procura a verdade e faz a vontade de Deus conforme o conhecimento que dela tem, pode salvar-se»[19] e «Muito embora Deus possa, por caminhos só d'Ele conhecidos, trazer à fé, «sem a qual é impossível agradar a Deus» (Heb 11, 6), homens que, sem culpa sua, ignoram o Evangelho, a Igreja tem o dever e, ao mesmo tempo, o direito sagrado, de evangelizar todos os homens.»[20]
Objecções e respostas
Alguém poderia facilmente objectar que a Igreja afirma duas coisas contraditórias:
Que a fé Católica é necessária à salvação.
Que os homens que não conhecem Cristo e a sua Igreja - ou seja, que não têm a fé Católica – mas que têm boa vontade e agem com um coração sincero, podem ser salvos.
Na realidade, esta contradicção é apenas aparente. A solução tradicional da Igreja para conciliar estas duas afirmações é a distinção entre a fé explícita e a fé implícita. A fé explícita é a fé Católica[21]professada abertamente por uma pessoa. A fé implícita[22]é a fé de uma pessoa ignorante acerca do Evangelho e da Igreja de Cristo que estaria disposta a acreditar em tudo aquilo que Deus possa ter revelado, ou seja, que estaria disposto a acreditar no Evangelho se a verdade lhe fosse anunciada. Podemos dizer que esta pessoa pertence invisivelmente à Igreja pelo desejo sobrenatural de se conformar à vontade de Deus, ou seja, o desejo suscitado pela graça divina de fazer tudo aquilo que Deus quer. Portanto, uma pessoa de boa vontade pode ter a fé Católica implicitamente, assim se resolve a aparente contradicção: a fé Católica é sempre necessária para a salvação, mas ela pode ser explícita ou implícita.
Outra objecção que poderia ser feita é a seguinte: “Mas então, se uma pessoa se pode salvar sem conhecer explicitamente Cristo e a sua Igreja, para que é que serve o esforço dos missionários (alguns deles morrem mártires e tudo!) e as orações pela conversão de todas as nações?”
De facto, é preciso afirmar que a possibilidade de alguém se salvar sem pertencer visivelmente à Igreja é uma possibilidade real, mas não é uma situação ideal! Como é que alguém pode viver de maneira recta e honesta no meio de culturas pagãs e religiões falsas, cheias de erros e com cultos absurdos? Será possível? Sim, é possível com a graça de Deus[23], mas não deixa de ser difícil - ou mesmo - muito difícil e, às vezes, quase impossível. Movidos por graças interiores muito fortes as pessoas nestas situações podem salvar-se, mas a situação delas é muito frágil.
Na sua Encíclica Mystici Corporis o Papa Pio XII dizia: « Os que não pertencem ao organismo visível da Igreja católica, como sabeis, veneráveis irmãos, confiamo-los também, desde o princípio do nosso pontificado, à proteção e governo do alto, protestando solenemente que a exemplo do bom pastor tínhamos um só desejo: "que eles tenham a vida e a tenham em abundância". Esta nossa solene declaração queremos reiterar (…) convidando a todos e cada um com todo o amor da nossa alma, a que espontaneamente e de boa vontade cedam às íntimas inspirações da graça divina e procurem sair de um estado em que não podem estar seguros de sua eterna salvação, pois, embora por desejo e voto inconsciente, estejam ordenados ao corpo místico do Redentor, carecem de tantas e tão grandes graças e auxílios que só na Igreja católica podem encontrar. Entrem, pois, na unidade católica e unidos connosco no corpo de Jesus Cristo, connosco venham a fazer parte, sob uma só cabeça, da sociedade da gloriosíssima caridade. Nós, jamais cessaremos as nossas súplicas ao Espírito de amor e verdade, e esperamo-los de braços abertos não como a estranhos, mas como a filhos que vêm para a sua casa paterna. (…) Ora, se muitos ainda - infelizes - estão longe da verdade católica e não querem ceder às inspirações da graça divina, é porque não só eles, mas também os fiéis não oram mais fervorosamente por essa intenção. Por isso nós uma e outra vez exortamos a todos a que, por amor da Igreja e seguindo o exemplo do divino Redentor, o façam continuamente. »
A ignorância de alguns sobre Cristo e a sua Igreja pode não ser culpável, mas isto não significa que seja boa, aliás, bem pelo contrário: ignorar uma coisa boa para a nossa salvação é sempre mau! A ignorância invencível acerca de Cristo e da sua Igreja não é uma coisa boa. É o que nos diz o Catecismo: «Se, pelo contrário, a ignorância é invencível, ou o juízo erróneo sem responsabilidade do sujeito moral, o mal cometido pela pessoa não pode ser-lhe imputado. Mas nem por isso deixa de ser um mal, uma privação, uma desordem. É preciso trabalhar, portanto, para corrigir dos seus erros a consciência moral»[24].
Basta pensarmos no caso da ignorância dos Judeus. Há milénios que não têm nem profetas, nem culto e, pior ainda, esperam um Messias que já veio! Haverá alguma situação religiosa mais desesperante do que esta? Se lhes fosse pregado o Evangelho certamente que alguns deles - os de boa vontade - haveriam de reconhecer em Cristo o Messias tanto esperado e anunciado no Antigo Testamento.
Os Ortodoxos, os Anglicanos, os Protestantes, os Muçulmanos, os Judeus … até mesmo os pagãos, podem aderir a algumas verdades em comum com a Igreja Católica (e até separar-se dela levando consigo a Profissão de fé, a Liturgia e alguns Sacramentos), mas todos eles carecem da Plenitude da Verdade que Cristo nos veio anunciar e que continua a anunciar através da sua Igreja, aquela que nós professamos todos os domingos no Credo: “Creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica”. A única e verdadeira Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo: «Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu» (Mt 16, 18-19). Acreditar que o Sucessor de Pedro, o Bispo de Roma (o Papa), é o Vigário de Cristo na terra e o Chefe legítimo da Única Igreja de Cristo é um dogma de fé.
São Paulo deixou bem claro que há Uma Única Igreja de Cristo: «Sim, Ele [Deus] tudo submeteu a seus pés e deu-o [a Cristo], como cabeça que tudo domina, à Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que tudo preenche em todos. (…) Há um só Corpo e um só Espírito (…) uma só esperança; um só Senhor, uma só fé, um só baptismo; um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos e permanece em todos» (Ef 1, 22 - 4, 6).
Cristo quer trazer todos os homens para a sua Igreja: «Eu sou o Bom Pastor (…) e ofereço a minha vida pelas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil [os homens de boa-fé em estado de ignorância invencível]. Também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz; e haverá um só rebanho e um só Pastor[a Única Igreja de Cristo, cujo Pastor Supremo é Cristo e cujo seu Vigário na terra é o Sucessor de Pedro: o Papa]» (Jo 10, 14-16).
Ainda que algumas comunidades religiosas separadas e igrejas dissidentes da Igreja Católica possam conter elementos objectivos de santificação (Profissões de fé, Sagrada Escritura, Liturgia, Sacramentos), elas contêm também elementos que são, objectivamente, obstáculos à santificação (doutrinas heréticas, rejeição da comunhão hierárquica, principalmente da Autoridade Papal…). O património constitutivo destes grupos é intrinsecamente conflituoso e contradictório. Falta a estas comunidades pelo menos um elemento constitutivo essencial para pertencerem à Verdadeira e Igreja de Cristo. Eis o problema!
É também preciso distinguir nestes grupos: o momento da ruptura em que é cometido um pecado grave de cisma ou heresia; e a vida destes grupos depois dessa ruptura, em que é transmitido às gerações seguintes um património cismático ou herético, mas o pecado pessoal (de cisma ou de heresia) não é transmissível; as gerações seguintes podem voltar a cometer esse pecado se re-actualizarem o pecado dos seus antepassados de maneira livre e consciente, mas também pode acontecer que, após a ruptura, passe a haver uma certa ignorância invencível (por exemplo, alguém que nasça numa comunidade Protestante sem conhecer a Igreja Católica e a sua doutrina) e, nesse caso, não há necessariamente uma adesão culpável à heresia ou ao cisma originais. As pessoas de boa vontade que pertencem a estes grupos podem salvar-se - pertencendo pelo desejo e invisivelmente à Verdadeira Igreja de Cristo - apesar de pertencerem visivelmente a uma falsa religião. É sempre a graça de Cristo, por meio da sua Igreja, que salva as almas!
A Fé verdadeira e a Caridade (amor a Deus e ao próximo) não se opõem, pelo contrário! Não se pode amar o que não se conhece. Portanto, o verdadeiro amor sobrenatural implica um verdadeiro conhecimento sobrenatural acerca de Deus e do próximo (a fé). Aqui em baixo na Terra, o amor de Deus é mais importante que o conhecimento de Deus, mas sem esse conhecimento nunca poderemos amar verdadeiramente: «Aqueles que não têm a verdadeira fé, diz São Tomás de Aquino, não podem amar Deus. Porque aquele que se engana acerca de Deus, já não é Deus que ele ama… De facto, o amor dirige-se apenas àquilo que lhe mostra a inteligência. Consequentemente, tudo o que nos leva à fé verdadeira está ao serviço da caridade»[25]. Os dogmas não são obstáculos ao amor de Deus, antes pelo contrário, são o caminho para o verdadeiro Amor. Uma pessoa que professe a verdadeira fé, pode, infelizmente, não agir de acordo com a fé[26], mas só a verdadeira fé é que permite à Caridade de se espalhar e crescer sem obstáculos.
Assim percebemos melhor o importante trabalho dos missionários e da oração dos cristãos pela conversão das nações. Os erros acerca da fé que impedem, desencorajam, desviam e pervertem a Caridade, tendem a tornar a salvação cada vez mais difícil e incerta. Quanto menos explícita é a Revelação (ou seja, com mais mistura de erros), maior pode ser a extensão e o perigo da influência dos erros[27]. É por isso que é urgente pregar ao mundo a integralidade do Evangelho. Não é apenas uma questão de uma vida interior mais ou menos profunda. É, de facto, uma questão de vida ou de morte espiritual (eterna) para muitos homens[28]. Além disso, a vocação missionária da Igreja faz parte da vontade do seu Fundador: «ide, pois, ensinai todas as nações, baptizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinai-as a observar tudo aquilo que vos mandei. Eis que estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos» (Mt 28, 19-20).
Conclusões práticas
A primeira conclusão é que não devemos adiar a nossa conversão, este é o tempo para nos salvarmos. Jesus pregava dizendo: «Temos de realizar as obras daquele que me enviou enquanto é dia. Vem aí a noite, em que ninguém pode trabalhar» (Jo 9, 4). Morte certa, hora incerta. Ninguém sabe o dia nem a hora em que chegará a sua noite (morte), o tempo que nos é dado, é o tempo que temos para nos salvar, para escolher entre o Bem e o Mal, entre Deus ou o Eu erigido em ídolo com os seus caprichos. Hoje pode ser o meu último dia na terra. Que fiz eu com a minha vida, com o tempo que me foi dado? Cristo veio para nos salvar e para isso fundou a sua Igreja. Ao longo do tempo e do espaço a Igreja é o Evangelho que continua, a Igreja é Cristo espalhado e comunicado. Viver segundo a Igreja Católica é viver segundo Jesus Cristo. Hoje é o dia para acolher as graças que me são dadas. Hoje é o dia para me converter com todo o coração a Cristo. Um cristão radical não é um bombista suicida, um cristão radical é um santo. Quanto mais tempo é que vou adiar a minha conversão? De que é que eu estou à espera para me entregar radicalmente a Cristo? Se hoje muita gente também não acredita e não quer fazer parte da Igreja também é porque faltam santos, faltam testemunhos coerentes e convincentes do Evangelho. Não só pela minha salvação, mas também pela salvação dos outros, chegou a hora de tomar uma opção radical: Deus ou nada!
A segunda e última conclusão prática é que devemos rezar, não só pela nossa conversão, mas também pela conversão dos outros. Cristo quer que participemos na sua obra de salvação. É através da mediação da Igreja que Cristo salva as almas dos que estão longe d’Ele. Nós, que somos membros da Igreja, somos convidados por Cristo a trabalhar na salvação das almas. Nossa Senhora disse aos pastorinhos, em Fátima, que havia muitas almas que se perdiam porque não tinham quem rezasse por elas. A partir desse dia, os pastorinhos nunca mais deixaram de rezar e oferecer sacrifícios pela conversão dos pecadores.
A imagem da Sagrada Escritura da Igreja como Esposa de Cristo (cf. Ef 5, 21-33) pode ajudar-nos a perceber melhor a nossa missão. Assim como no matrimónio cristão, indissolúvel e exclusivo, o marido gera os seus filhos exclusivamente com a sua única mulher, assim Cristo quer gerar filhos na fé exclusivamente através do baptismo e da intercessão da Igreja sua Esposa. Nós, que fazemos parte da Igreja, devemos rezar pela conversão das nações. Devemos unir os nossos sofrimentos aos sofrimentos da Cruz de Cristo para gerar mais filhos na fé. Jesus quer gerar filhos na fé, ou seja, quer multiplicar as conversões, através das nossas orações e dos nossos sacrifícios livremente entregues a Cristo numa aliança de amor. Estamos à espera de quê?
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Notas de Rodapé:
[1] Seria preciso mais tempo para explicar com rigor porque é que um católico não pode ser “não-praticante”. Infelizmente, a maior parte das pessoas que deixam de ir à Missa não é porque têm argumentos sérios para afirmar que a Igreja Católica não é a verdadeira Igreja fundada por Cristo, ou que o culto de Deus não é um aspecto fundamental da fé cristã. Não! A maior parte das pessoas simplesmente deixaram de ir à Missa por preguiça e desleixo ou porque as suas vidas morais deixaram de coincidir com a vontade de Deus e por isso sentem-se desconfortáveis na igreja. Essas pessoas acabam, na prática, por negar a fé, não por convicção intelectual, mas por fraqueza moral. Em vez de viverem segundo aquilo em que acreditam, acabam por acreditar segundo a maneira como vivem. Deixa de ser a razão iluminada pela fé a conduzir as suas vidas e passam a ser escravas dos seus caprichos. Quando o conforto e o prazer são os critérios que guiam a nossa vida, já não é Cristo que reina no nosso coração. Cristo é o único critério!
[2] Não consigo deixar de notar que, ironicamente, a afirmação “tudo é relativo, não há verdades absolutas” é perfeitamente contraditória, porque esta afirmação pretende ser, ela mesma, uma verdade absoluta.
[3] Catecismo da Igreja Católica, nº1035: «A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, «o fogo eterno». A principal pena do inferno consiste na separação eterna de Deus, o único em Quem o homem pode ter a vida e a felicidade para que foi criado e a que aspira.»
[4] Ver também Lc 13, 24.
[5] Concílio de Trento, Decreto sobre a Justificação, cap. 3 “Aqueles que são justificados por Cristo”, DH 1523.
[6] Um dogma é uma verdade de fé definida pela Igreja como revelada. É uma verdade à qual um católico deve aderir firmemente (acreditar). No seu sentido teológico preciso, um dogma é uma verdade contida na Palavra de Deus escrita ou oralmente transmitida, e que a Igreja nos propõe acreditarmos como sendo divinamente revelada; a Igreja faz isto através de um juízo solene, ou através do Magistério ordinário e universal.
[7] Congregação para a Doutrina da Fé, Dominus Jesus, 6 de Agosto 2000: «Antes de mais, deve crer-se firmemente que a «Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação; ora, Ele torna-se-nos presente no seu Corpo que é a Igreja; e, ao inculcar por palavras explícitas a necessidade da fé e do Baptismo (cf. Mc 16,16; Jo 3,5), corroborou ao mesmo tempo a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Baptismo tal como por uma porta». Esta doutrina não se contrapõe à vontade salvífica universal de Deus (cf. 1 Tim 2,4); daí a necessidade de manter unidas estas duas verdades: a real possibilidade de salvação em Cristo para todos os homens, e a necessidade da Igreja para essa salvação».
[8] Consultar a Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston em 1949.
[9] Lumen Gentium, nº14: «O sagrado Concílio volta-se primeiramente para os fiéis católicos. Fundado na Escritura e Tradição, ensina que esta Igreja, peregrina sobre a terra, é necessária para a salvação. Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de salvação e Ele torna-Se-nos presente no Seu corpo, que é a Igreja; ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do Baptismo (cfr. Mc. 16,16; Jo. 3,15), confirmou simultaneamente a necessidade da Igreja, para a qual os homens entram pela porta do Baptismo. Pelo que, não se poderiam salvar aqueles que, não ignorando ter sido a Igreja católica fundada por Deus, por meio de Jesus Cristo, como necessária, contudo, ou não querem entrar nela ou nela não querem perseverar.» Ver também o Catecismo da Igreja Católica, nº846.
[10] São Vicente de Lérins, Commonitorium, XXII, 6-7, 177. : «Engasta as pedras preciosas do dogma divino, une-as fielmente, adorna-as sabiamente, aumenta o [seu] esplendor, graça e beleza. Seja compreendido mais claramente por meio de ti o que antes era acreditado de forma mais obscura. A posteridade ser-te-á grata por entender aquilo que antes os antigos acreditavam sem ser percebido. Ao mesmo tempo, ensina o que aprendeste, dizendo-o de forma nova, mas sem dizeres coisas novas»
[11] Hipostática significa pessoal. A “união hipostática” designa precisamente a união do Verbo Divino à natureza humana, união das duas naturezas (divina e humana) na pessoa do Verbo. Podemos dizer que no Verbo Encarnado a natureza humana de está pessoalmente unida ao Verbo de Deus. Esta expressão teológica é utilizada para explicar como é que Jesus é Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem.
[12] Esta distinção também pode ser aplicada ao “Baptismo de desejo” e à “Confissão de desejo” (alguém que se arrependeu profundamente e que se queria confessar, mas morreu antes de poder receber a absolvição sacramental). Esta distinção é feita claramente por São Tomás de Aquino na Suma Teológica, 3ª Parte, Questão 68, Artigo 2, Respondeo: «(…) Há, porém, outro modo de não ser baptizado: não ser baptizado na realidade, mas sê-lo no desejo, como quando alguém deseja baptizar-se, mas por acaso a morte o surpreende antes de receber o baptismo. Ele pode alcançar a salvação sem a realização do baptismo por causa do desejo do baptismo que procede da “fé que age pelo amor”, pela qual Deus, cujo poder não se limita aos sacramentos visíveis, santifica o homem interiormente. (…)». No Antigo Testamento - antes da Encarnação - Deus também santificava interiormente os homens sem recorrer aos sacramentos instituídos por Cristo, mas as graças recebidas pelos justos antes da Encarnação de Cristo eram graças por antecipação do Sacrifício redentor de Jesus, como o Sol na alvorada que já ilumina a terra antes de aparecer no horizonte. Depois da Encarnação, as graças são dadas por derivação do Sacrifício redentor de Cristo na Cruz. O sangue e a água que escorrem do lado aberto de Cristo simbolizam o Baptismo e a Eucaristia, respectivamente, o primeiro e o mais importante dos Sacramentos.
[13] Catecismo da Igreja Católica nº2023: «A graça santificante é o dom gratuito que Deus nos faz da sua vida, infundida pelo Espírito Santo na alma para a curar do pecado e a santificar.»
[14] Perseverar em estado de graça, para um católico, não deveria ser simplesmente evitar os pecados mortais por medo do Inferno, deveria ser uma progressão na vida espiritual motivada sobretudo pelo amor a Deus e pelo desejo do Céu. Já diziam os santos: “na vida espiritual, quem não avança, recua!”
[15]Em última análise, só Deus é que pode julgar esta recusa íntima do coração do homem.
[16]Catecismo da Igreja Católica, nº1791: «Muitas vezes, tal ignorância pode ser imputada à responsabilidade pessoal. Assim acontece «quando o homem pouco se importa de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado». Nesses casos, a pessoa é culpada do mal que comete».
[17]A ignorância invencível é uma falta de conhecimento não culpável, porque está fora do alcance da pessoa adquirir esse conhecimento pelos seus próprios meios. Por exemplo, um pagão que viva numa ilha isolada onde nunca houve missionários ou um muçulmano que nasceu numa cultura muçulmana e nunca ouviu falar de Cristo Redentor e da sua Igreja, estão ambos num caso de ignorância invencível. Para saber mais sobre a ignorância invencível pode-se consultar o Catecismo da Igreja Católica nº1790-1793 e 1860.
[18] Lumen Gentium, nº16.
[19] Catecismo da Igreja Católica, nº1260.
[20] Catecismo da Igreja Católica, nº848.
[21]O conteúdo mínimo da fé explícita em que um católico deve acreditar movido pela graça é o seguinte:
1. O Credo – aquilo em que devemos acreditar;
2. Os Mandamentos – aquilo que devemos fazer ou como devemos agir;
3. O Pai Nosso – aquilo que devemos pedir e desejar.
[22]O conteúdo mínimo da fé implícita que um homem de boa-vontade deve acreditar movido pela graça é discutido pelos teólogos:
1. uns dizem que é preciso saber pelo menos que Deus é criador e retribuidor, ou seja, que Deus existe e que governa o Universo («Quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que o procuram» (Heb 11, 6 e ver também Romanos 1, 18-32);
2. outros dizem que – tendo em conta o clima actual de ateísmo cultural e ideológico – uma simples abertura da pessoa à transcendência ou uma noção da sua dependência de criatura em relação ao Transcendente é suficiente.
[23]Porque a Deus nada é impossível! (Lc 1, 37 e Lc 18, 27)
[24] Catecismo da Igreja Católica, nº1793.
[25]São Tomás de Aquino, Comm. In I Tim., cap. 1, lect. 2.
[26]Os pecadores – em estado de pecado mortal – também fazem parte da Igreja Católica desde que mantenham a fé, e podem voltar ao estado de graça pela Confissão. Mesmo estando em estado de pecado eles ainda acreditam na Misericórdia de Deus. Aqueles que negam a fé, como é o caso de muitos “católicos não-praticantes”, excluem-se da Igreja.
[27] Catecismo da igreja Católica, nº1792: «A ignorância a respeito de Cristo e do seu Evangelho, os maus exemplos dados por outros, a escravidão das paixões, a pretensão de uma mal entendida autonomia da consciência, a rejeição da autoridade da Igreja e do seu ensino, a falta de conversão e de caridade, podem estar na origem dos desvios do juízo na conduta moral».
[28] Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, nº16: «(…) muitas vezes, os homens, enganados pelo demónio, desorientam-se nos seus pensamentos e trocam a verdade de Deus pela mentira, servindo a criatura de preferência ao Criador (cfr. Rom. 1,21 e 25), ou então, vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, expõem-se à desesperação final. Por isso, para promover a glória de Deus e a salvação de todos estes, a Igreja, lembrada do mandato do Senhor: «pregai o Evangelho a toda a criatura» (Mc. 16,16), procura zelosamente impulsionar as missões».